Ecoturismo, uma indústria sem chaminé - Paola Verri de Santana



A obra “Ecoturismo: uma indústria sem chaminé”, de Paola Verri de Santana, que por ora é apresentada ao público em edição de livro eletrônico é uma reprodução quase integral da sua dissertação de mestrado (foram feitas pequenas alterações), realizado no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, defendida em setembro de 1998.

O trabalho traz notórias contribuições para o debate da Geografia e os estudos do espaço, sobretudo porque trata de uma temática atual e sob uma perspectiva teórico metodológica capaz de revelar os processos e elementos complexos articulados contraditoriamente na produção capitalista do espaço, num movimento que aponta – e insere o seu objeto de estudo - para a totalidade dos fenômenos e processos sócio-espaciais constitutivos da modernidade em seu estágio atual. Nesse sentido é um trabalho que não se prende e nem sem fecha sobre a sua problemática – isolando-a e fragmentando-a -, mas busca desvendar os liames do seu objeto de estudo (o ecoturismo) com o movimento maior – e que lhe confere significação - da reprodução das relações de produção.

Vivenciamos um momento em que as temáticas relacionadas aos estudos da natureza e das relações conflituosas entre a sociedade e a natureza assumem um papel de destaque, sobretudo porque são veiculadas diariamente pelas grandes mídias e sob o embalo de acontecimentos recentes - como no caso das constatações e prognósticos da ONU sobre as mudanças climáticas globais. A questão ambiental e as preocupações com a natureza estão na ordem do dia. Porém, a forma como tais conteúdos são apresentados pela visão hegemônica não tem permitido uma compreensão dos processos em sua complexidade - da forma como realmente são determinados – pois não é feita uma articulação entre a reprodução dos processos do capital e a reprodução crítica dos elementos da realidade – incluídas aí as problemáticas do meio ambiente. O trabalho de Santana possui a sutileza de através do estudo de uma atividade que se constitui em relação direta com uso (e consumo) do espaço,  esclarecer como as relações com a natureza e com os espaços naturais (as “paisagens naturais intocadas”) são permeadas e mediadas pela lógica abstrata do modo de produção. Ao realizar esse movimento ilumina o entendimento de que as crises ambientais se relacionam e são compreendidas no bojo das relações sócio espaciais capitalistas.

Ao longo do trabalho o ecoturismo é apresentado como uma atividade econômica específica do estágio atual da reprodução das relações de produção; uma atividade que se utiliza do mote ambiental como estratégia para sua realização, num momento caracterizado pela ampliação e consolidação do modo de vida urbano. Este também seria o momento em que o processo de reprodução deixou de estar restrito ao espaço-tempo do trabalho – na forma de extração da mais valia, pela exploração direta nos locais de trabalho – e se ampliou sobre a sociedade como um todo, capturando o espaço-tempo do não-trabalho, capturando o cotidiano como elemento da reprodução capitalista. A partir de então a reprodução extrapola o espaço das indústrias e passa a abarcar todo o espaço da reprodução social.

Esse seria um dos momentos decorrentes da constituição da sociedade urbana, vislumbrada pelo filósofo Henri Lefebvre. A reprodução das relações de produção realizar-se-ia sobretudo pela (re)produção do espaço e pela (re)produção do cotidiano, culminando numa “sociedade burocrática de consumo dirigido”. O ecoturismo pode ser entendido como uma das estratégias que articulam o uso do tempo capturado (o tempo do lazer) ao consumo de espaços funcionalmente capacitados (os espaços destinados ao ecoturismo).

Um dos caminhos perseguidos pela autora buscou desvendar em que medida a “consciência ecológica”, influenciou na formação da indústria do ecoturismo. No Brasil este ainda seria um mercado em constituição e pouco consolidado. O país também teria passado por um processo recente de reconhecimento e aceitação da “consciência ecológica”, que teria surgido inicialmente nos países capitalistas avançados. A escala de análise privilegiada foi a da metrópole de São Paulo, que se constitui na localidade nacional que concentra a maior parte dos empreendimentos e ONGs que exploram atividades relacionadas ao ecoturismo, bem como de consumidores nacionais de produtos ecoturísticos. Sua pesquisa revelou a existência de uma forte ligação entre a consolidação da “consciência ecológica” e a formação da indústria do ecoturismo no Brasil, tendo como um dos marcos a realização da Rio-92.

O pensamento ecológico não é um movimento uniforme e sem divergências, mas é composto por diferentes concepções sobre a natureza e o papel do homem. Essas  diferentes concepções orientam interpretações também distintas sobre a relação da sociedade com a natureza, com exemplos em casos extremos em que hora existe uma supervalorização da natureza perante as ações humanas, e hora uma supervalorização dos atributos  humanos frente a uma natureza tida como selvagem.  Tais concepções orientam diferentes posicionamentos em relação ao enfrentamento dos problemas ambientais.  Uma das matrizes de pensamento hegemônica na interpretação da relação da sociedade com a natureza entende a possibilidade e necessidade de realização de um “desenvolvimento sustentável”, que seria capaz de promover o crescimento econômico em conformidade com os limites ambientais e respeitando a manutenção das estruturas da acumulação capitalista. O ecoturismo seria apontado como uma atividade caricata do “desenvolvimento sustentável”, pois promoveria um uso não predatório da natureza, ao passo que realiza os anseios do mercado.

O trabalho de Santana caminha na contramão desse pensamento hegemônico, relacionando os nexos existentes entre a degradação da natureza com a degradação da vida urbana, articulados sob o prisma da reprodução das necessidades do modo de produção hegemônico. O ecoturismo como atividade econômica pautada no consumo de espaços dotados de atributos naturais qualitativos traria em si mesmo os elementos de uma economia contraditória. As “paisagens naturais intocadas” (uma representação necessária para a indústria do ecoturismo) seriam um atributo finito e raro, ao passo que as necessidades da economia capitalista são ilimitadas – sua lógica é a da reprodução ampliada.     O ecoturismo é apontado como uma atividade em expansão – e que se opõe ao turismo convencional justamente por ser uma prática de consumo restrito. A sua expansão implicaria na reprodução de elementos descaracterizadores da sua especificidade enquanto mercadoria de consumo restrito.

Contudo um dos grandes méritos da obra e para o pensamento Geográfico advém do tratamento metodológico do qual a autora se utiliza para entender como se dá a produção e consumo do espaço - sobretudo em se tratando dos “espaços naturais”. Existe no pensamento Geográfico uma forte tendência à dicotomia entre natureza e sociedade, que por seu lado resulta em estudos fragmentados e entendimentos enviesados da realidade. O trabalho de Santana serve como um alerta para os perigos de se pensar hoje um “espaço natural” sacralizado e distante do universo das relações sociais capitalistas.


*Frederico Bertolotti, é Geógrafo e mestrando em Geografia pela USP. Membro do GESP – Grupo de Estudos sobre São Paulo – LABUR/USP.


Fonte: http://www.fflch.usp.br/dg/gesp/resenhas_passadas/portugues/labur5.html

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